outubro 26, 2011

Sermão de santo António aos peixes: continuação da análise textual

O padre António Vieira louva as "virtudes" dos peixes como alegoria dos "defeitos" dos homens, isto é, para fazer uma crítica social muito violenta.
 
Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.
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Este período inicia-se com um conector de discurso, conjunção adversativa, «mas», para estabelecer uma oposição de sentido com o que escreveu anteriormente. Neste caso, refere-se ao torpedo, começando por fazer uma descrição, principalmente do seu "comportamento": o diminutivo peixezinho para enfatizar o pequeno porte do animal e para daí resultar mais óbvio o "poder" das suas "virtudes". Por outro lado, a insinuação irónica, resultante da aparente antítese de que quem maior é e quem mais virtude tem, menos precisa de se mostrar: «têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.», numa clara alusão à arrogância dos homens que procedem de maneira oposta. Além disso, uma referência precisa à realidade, através do advérbio de lugar «cá», para completar a descrição do peixe: é pouco conhecido «cá», no Brasil, onde o Padre se encontra a pregar este Sermão.
 
Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.
 
Veja-se a gradação usada para descrever o efeito de choque elétrico produzido pelo peixe: « da boca ao anzol, do anzol à linha,....» Também a enumeração e o assíndeto, com o uso sucessivo das vírgulas. E é a resposta à interrogação retórica enunciada antes, interrogação que, através da adjectivação utilizada: «maior, mais breve e mais admirável», tornava a resposta óbvia (também uma gradação).
Para se referir ao choque elétrico, utiliza a metáfora «virtude», porque é nesse sentido que o padre vai usar a sua argumentação, para persuadir o seu auditório.
 
Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
 
E aqui está a conclusão das premissas com que argumenta a favor da sua tese: os«pescadores do nosso elemento», isto é, da terra, e não do elemento água, "pescam muito e tremem pouco". Repare-se, então, na alegoria, através de várias metáforas: pescador que pesca--»homens que roubam; e pouco tremem, isto é, não têm problemas de consciência. Conclui este período com uma frase exclamativa breve, sem verbo, para a tornar mais incisiva, e que contribui para conferir um ritmo mais vivo e expressivo ao sentimento de indignação que pretende comunicar a quem o escuta. Também o uso da antítese, através do uso dos advérbios de quantidade," tanto/ tão pouco".
 
Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
 
Agora usa a expansão/ amplificação da argumentação, para demonstrar a sua tese e persuadir o auditório: «Pudera-se fazer problema.........?», terminando com uma interrogação, cuja resposta aqui é explicitada, porque pressupõe a seleção de uma de duas hipóteses: mar ou terra (disjuntiva).
E enumera, então, "torrencialmente", os exemplos, as "provas", de que a sua tese é verdadeira, usando a anáfora para a tornar mais convincente (repetição do verbo "pescam", num presente "histórico", para demonstrar que este comportamento é de todos os tempos). O ritmo da frase é binário, isto é verbo/ substantivo ( pescam- bastões, etc), usando, também, o assíndeto e gradação que culmina com a conclusão apoteótica: «pescam cidades e reinos inteiros». Todo este excerto é claramente alegórico, simbolizando o roubo e a conquista sem escrúpulos a que os homens se dedicavam (também os portugueses...), principalmente os mais poderosos, os que deviam dar exemplo de virtude, como era o caso dos senhores da Igreja e da Justiça: a crítica social é o objetivo único deste Sermão.
Finalmente, a referência habitual a santo António, que lhe inspirou este Sermão: a «língua» do santo faria «tremer» estes homens, isto é, a sua palavra faria com que as consciências despertassem.
 
-- Os excertos do Sermão estão em itálico e foram retirados da III Parte, Confirmação.
 

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