outubro 30, 2012

Mar AMar

Do padre António Vieira, Sermão de santo António aos peixes, I Parte:

 "O mar está tão perto que bem me ouvirão."

De Manuel Alegre, este lindíssimo poema:

Coisa Amar

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

outubro 29, 2012

O sermão de santo António aos peixes: análise textual

Os excertos do Sermão estão em itálico e foram retirados da III Parte, Confirmação.


O padre António Vieira louva as "virtudes" dos peixes como alegoria dos "defeitos" dos homens, isto é, para fazer uma crítica social muito violenta.
---Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.
.Este período inicia-se com um conector de discurso, conjunção adversativa, «mas», para estabelecer uma oposição de sentido com o que escreveu anteriormente. Neste caso, refere-se ao torpedo, começando por fazer uma descrição, principalmente do seu "comportamento": o diminutivo peixezinho para enfatizar o pequeno porte do animal e para daí resultar mais óbvio o "poder" das suas "virtudes". Por outro lado, a insinuação irónica, resultante da aparente antítese de que quem maior é e quem mais virtude tem, menos precisa de se mostrar: «têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.», numa clara alusão à arrogância dos homens que procedem de maneira oposta. Além disso, uma referência precisa à realidade, através do advérbio de lugar «cá», para completar a descrição do peixe: é pouco conhecido «cá», no Brasil, onde o Padre se encontra a pregar este Sermão.
---Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador. 
Veja-se a gradação usada para descrever o efeito de choque elétrico produzido pelo peixe: « da boca ao anzol, do anzol à linha,....» Também a enumeração e o assíndeto, com o uso sucessivo das vírgulas. E é a resposta à interrogação retórica enunciada antes, interrogação que, através da adjectivação utilizada: «maior, mais breve e mais admirável», tornava a resposta óbvia (também uma gradação).
Para se referir ao choque elétrico, utiliza a metáfora «virtude», porque é nesse sentido que o padre vai usar a sua argumentação, para persuadir o seu auditório.
---Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
E aqui está a conclusão das premissas com que argumenta a favor da sua tese: os«pescadores do nosso elemento», isto é, da terra, e não do elemento água, "pescam muito e tremem pouco". Repare-se, então, na alegoria, através de várias metáforas: pescador que pesca--»homens que roubam; e pouco tremem, isto é, não têm problemas de consciência. Conclui este período com uma frase exclamativa breve, sem verbo, para a tornar mais incisiva, e que contribui para conferir um ritmo mais vivo e expressivo ao sentimento de indignação que pretende comunicar a quem o escuta. Também o uso da antítese, através do uso dos advérbios de quantidade," tanto/ tão pouco". 
---Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
Agora usa a expansão/ amplificação da argumentação, para demonstrar a sua tese e persuadir o auditório: «Pudera-se fazer problema.........?», terminando com uma interrogação, cuja resposta aqui é explicitada, porque pressupõe a seleção de uma de duas hipóteses: mar ou terra (disjuntiva).
E enumera, então, "torrencialmente", os exemplos, as "provas", de que a sua tese é verdadeira, usando a anáfora para a tornar mais convincente (repetição do verbo "pescam", num presente "histórico", para demonstrar que este comportamento é de todos os tempos). O ritmo da frase é binário, isto é verbo/ substantivo ( pescam- bastões, etc), usando, também, o assíndeto e gradação que culmina com a conclusão apoteótica: «pescam cidades e reinos inteiros». Todo este excerto é claramente alegórico, simbolizando o roubo e a conquista sem escrúpulos a que os homens se dedicavam (também os portugueses...), principalmente os mais poderosos, os que deviam dar exemplo de virtude, como era o caso dos senhores da Igreja e da Justiça: a crítica social é o objetivo único deste Sermão.
Finalmente, a referência habitual a santo António, que lhe inspirou este Sermão: a «língua» do santo faria «tremer» estes homens, isto é, a sua palavra faria com que as consciências despertassem.
 

outubro 20, 2012

"Epitáfio": Manuel António Pina

Manuel António Pina: 1943-2012
Não o Sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

(sublinhados meus)

in "Atropelamento e Fuga"

outubro 15, 2012

Vós sois o sal de terra: exórdio do Sermão

Vos estis sal terrae

Sé de Lamego (foto minha)
Este é o conceito predicável, isto é, a pequena frase retirada do Evangelho de S. Mateus, que servirá de Tema/Tese ao Sermão e, a partir do qual irá desenvolver a sua argumentação (início do exórdio).

Vós sois o sal da terra: os pregadores são o sal, a terra os homens.

O sal impede que os alimentos se estraguem;

Os pregadores impedem a corrupção;
Mas a terra está corrupta/ "estragada"--- de quem é a culpa?
Pode ser atribuída a duas causas: o pregador não prega em condições a palavra de Deus/ a terra não "ouve" a palavra do pregador.
O raciocínio é lógico, desenvolvido como se fosse um silogismo: premissas e conclusão. ( Todo o homem é mortal/ Sócrates é homem=» Sócrates é mortal).


Expansão/ amplificação do argumento:

Os pregadores não "salgam" porque:
  • não pregam a verdadeira doutrina; ou
  • dizem uma cousa e fazem outra; ou
  • se pregam a si e não a Cristo.   
A terra não se deixa "salgar" porque:
  • os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber; ou
  • os ouvintes querem antes imitar o que eles[pregadores] fazem, que fazer o que dizem; ou
  • os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites.
Veja-se, então:
  • a construção anafórica, "simétrica", paralelística:" ou é porque.. ou é porque...."
  • a utilização dos conectores disjuntivo e causal: "ou..ou"; "porque";
  • a antítese que se gera a partir do desdobramento das hipóteses: os pregadores não pregam# os ouvintes não "ouvem".

Toda esta argumentação foi desencadeada por uma interrogação retórica:"...qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?", através da qual capta a atenção do auditório/público, tornando-o interventor do discurso, como que apelando à sua aproximação e presença. Não esquecer que se trata de um discurso de 2ª pessoa ( pronome pessoal, plural: vós).

Termina este 1º parágrafo, em crescendo prosódico, em "euforia", novamente com uma interrogação retórica: "Não é tudo isto verdade? " para, seguidamente, na resposta, haver uma quebra rítmica com uma resposta breve, abrupta e exclamativa: "Ainda mal!"
De destacar, ainda, o uso sucessivo da vírgula, o assíndeto, que torna quase hipnótica e "pendular" a enumeração dos argumentos, num ritmo gradativo.

outubro 09, 2012

A Retórica e o Sermão

 

Eloquência é, segundo a definição comum, a arte de bem falar. O orador deverá, então, cumprir as regras da eloquência: docere, isto é, ensinar, explicando e expondo argumentos; delectare, isto é, agradar, deleitar, captando o agrado e a atenção do auditório, de modo a não causar aborrecimento; movere, isto é, comover, apelando às emoções e tentando "tocar" os sentimentos do auditório.
Na Filosofia, segundo Aristóteles, para persuadir e cativar o auditório, o orador deve ter em atenção três aspetos: o ethos, o logos e o pathos, que correspondem aos conceitos acima enunciados.
O ethos recomenda que o orador, através do seu exemplo e caráter, seja valorizado pelo auditório; o logos pressupõe que os argumentos sejam bem estruturados, fundamentando a tese apresentada, para que seja compreendida e aceite pelo auditório; e, finalmente, o pathos, através do qual o orador conseguirá sensibilizar as emoções do auditório, no sentido de provocar a sua adesão.
Verificamos, então, que estes conceitos coincidem, os primeiros do latim, os segundos do grego: logos (pensamento)--» docere(ensinar); pathos (patético)--» movere (comover); (??)ethos (ética)--» delectare(deleitar).
O padre António Vieira afirma isto mesmo, a propósito do que deve ser o comportamento do pregador, logo no exórdio, e assim vai estruturando o seu Sermão, um texto argumentativo, obedecendo às regras clássicas da Retórica:
«Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.»
.
in Sermão de santo António aos peixes, I Parte

outubro 01, 2012

Dia mundial da música

Hoje, dia 1 de outubro, comemora-se o dia mundial da música.
Escolhi, para o assinalar, um compositor português do Barroco, Carlos Seixas (1704- 1742).



No entanto, muitos desconhecem que o próprio rei, D. João IV (1604- 1656), foi também um compositor muito talentoso. Para quem o quiser ouvir: