outubro 29, 2012

O sermão de santo António aos peixes: análise textual

Os excertos do Sermão estão em itálico e foram retirados da III Parte, Confirmação.


O padre António Vieira louva as "virtudes" dos peixes como alegoria dos "defeitos" dos homens, isto é, para fazer uma crítica social muito violenta.
---Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.
.Este período inicia-se com um conector de discurso, conjunção adversativa, «mas», para estabelecer uma oposição de sentido com o que escreveu anteriormente. Neste caso, refere-se ao torpedo, começando por fazer uma descrição, principalmente do seu "comportamento": o diminutivo peixezinho para enfatizar o pequeno porte do animal e para daí resultar mais óbvio o "poder" das suas "virtudes". Por outro lado, a insinuação irónica, resultante da aparente antítese de que quem maior é e quem mais virtude tem, menos precisa de se mostrar: «têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.», numa clara alusão à arrogância dos homens que procedem de maneira oposta. Além disso, uma referência precisa à realidade, através do advérbio de lugar «cá», para completar a descrição do peixe: é pouco conhecido «cá», no Brasil, onde o Padre se encontra a pregar este Sermão.
---Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador. 
Veja-se a gradação usada para descrever o efeito de choque elétrico produzido pelo peixe: « da boca ao anzol, do anzol à linha,....» Também a enumeração e o assíndeto, com o uso sucessivo das vírgulas. E é a resposta à interrogação retórica enunciada antes, interrogação que, através da adjectivação utilizada: «maior, mais breve e mais admirável», tornava a resposta óbvia (também uma gradação).
Para se referir ao choque elétrico, utiliza a metáfora «virtude», porque é nesse sentido que o padre vai usar a sua argumentação, para persuadir o seu auditório.
---Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
E aqui está a conclusão das premissas com que argumenta a favor da sua tese: os«pescadores do nosso elemento», isto é, da terra, e não do elemento água, "pescam muito e tremem pouco". Repare-se, então, na alegoria, através de várias metáforas: pescador que pesca--»homens que roubam; e pouco tremem, isto é, não têm problemas de consciência. Conclui este período com uma frase exclamativa breve, sem verbo, para a tornar mais incisiva, e que contribui para conferir um ritmo mais vivo e expressivo ao sentimento de indignação que pretende comunicar a quem o escuta. Também o uso da antítese, através do uso dos advérbios de quantidade," tanto/ tão pouco". 
---Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
Agora usa a expansão/ amplificação da argumentação, para demonstrar a sua tese e persuadir o auditório: «Pudera-se fazer problema.........?», terminando com uma interrogação, cuja resposta aqui é explicitada, porque pressupõe a seleção de uma de duas hipóteses: mar ou terra (disjuntiva).
E enumera, então, "torrencialmente", os exemplos, as "provas", de que a sua tese é verdadeira, usando a anáfora para a tornar mais convincente (repetição do verbo "pescam", num presente "histórico", para demonstrar que este comportamento é de todos os tempos). O ritmo da frase é binário, isto é verbo/ substantivo ( pescam- bastões, etc), usando, também, o assíndeto e gradação que culmina com a conclusão apoteótica: «pescam cidades e reinos inteiros». Todo este excerto é claramente alegórico, simbolizando o roubo e a conquista sem escrúpulos a que os homens se dedicavam (também os portugueses...), principalmente os mais poderosos, os que deviam dar exemplo de virtude, como era o caso dos senhores da Igreja e da Justiça: a crítica social é o objetivo único deste Sermão.
Finalmente, a referência habitual a santo António, que lhe inspirou este Sermão: a «língua» do santo faria «tremer» estes homens, isto é, a sua palavra faria com que as consciências despertassem.
 

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